sábado, 7 de julho de 2012

Devaneios*

Aquela rua era estranha. Os galos cantavam às três da manhã, os morcegos desfilavam às duas da tarde e os cães comiam à mesa! Havia todo um toque de mistério a envolver aquilo que constituia a pequena grande fila de paralelos desde o seu inicio até ao seu fim. 
Por norma, era uma rua deserta a maior parte do dia, tirando o senhor Manuel com a sua tosse constante causada pelo tabaco sempre feito à mão, e a dona Margarida sempre com as suas lides do campo cinzento. 
Só à tardinha é que aquela rua era pisada por outras pessoas, outra gente, gente mais jovem, gente que cedo se fechava em casa e que mantinha a reputação sinistra da passadeira das histórias bem assegurada. 
Naquela rua fazia mais chuva do que sol, havia mais bisbilhotice do que companheirismo ... OH longa passadeira imunda e ingrata onde todos os dias havia velório.
 Ali, passo a passo, podia ler-se a história de um povo, a história daqueles que já lá passaram uma vida e que agora vagueiam por lá na sua morte sem que ninguém os veja. 
Na viela de que falo, os pensamentos das pessoas eram assombrados, a felicidade era algo inalcançável e o olhar, ah, o olhar dos miseráveis que a habitavam era o único meio sobrevivente de comunicação ... coitados, já nem a força para falar lhes era digna , tiraram-la o tempo, o desgaste, todo aquele acumular de anos com boca cozida e paredes com ouvidos. 
Mas naquela rua havia como que uma chave que aparecia sempre de forma absolutamente súbita ... algo que permitia a abertura de uma porta através da qual o sol brilhava, as pessoas sorriam, o silêncio era reconfortante, os campos eram verdes e a felicidade sufocava agradavelmente aquela boa gente. 
O ambiente vivo... havia vontade, o povo falava expressivamente e os velórios davam lugar a novas vidas. Era algo semelhante ao paraíso, um contraste de uma enorme imensidão onde todo mundo, desde os bichos até aos seres de coração profundo, era considerado como irmão. 
Ciente de que estes devaneios são puro fruto desta minha mente e que a doce chave permanecerá quer no amigo futuro quer no meu caro presente sobre a forma de homem grande que diz amar-me profundamente, assim me deito.